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por Estado de Minas
 
Com a retomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quarta (21), do julgamento do recurso que pode descriminalizar o porte de drogas para consumo pessoal no Brasil, iniciado oito anos atrás, volta também à pauta o debate sobre quais critérios objetivos podem ser usados para distinguir usuários de traficantes.

A lei 11.636, de 2006, que retirou a pena de prisão para casos de posse de drogas para consumo pessoal, mesmo mantendo o uso como crime, deixou essa questão em aberto.

O texto do artigo 28 afirma que "para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente".

Na prática, no entanto, sem critérios objetivos, essa distinção se tornou subjetiva, enviesada por estigmas sociais. E, no lugar de diminuir prisões, a lei aumentou a proporção de pessoas presas por tráfico de drogas desde então.
 

Em 2005, antes da lei, 14% dos presos brasileiros eram acusados ou condenados por tráfico de drogas. Em junho de 2022, esse percentual já era de quase 30%.

Estudos apontam que muitos foram presos com quantidades pequenas de drogas e que pessoas negras foram consideradas como traficantes mesmo flagradas com quantidades muito menores do que aquelas que classificaram pessoas brancas como usuárias.

"A não existência de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes é um dos grandes motivos de termos um Judiciário e uma polícia que prendem pessoas em função de sua cor de pele e de seu endereço ser ou não na favela", aponta Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundation e ex-secretário Nacional da Justiça.

"Essa é uma situação inconstitucional. O Supremo tem a obrigação de estabelecer critérios", avalia.

Em 2015, no início do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, a ser retomado nesta quarta, o ministro Luís Roberto Barroso sugeriu que o país adotasse como critério o limite de posse de 25 gramas de maconha, a exemplo do adotado em Portugal em 2001. Outras drogas não foram mencionadas à época.
 

Naquele mesmo ano, o Instituto Igarapé reuniu 47 especialistas no tema, entre médicos, advogados, pesquisadores, sociólogos e neurocientistas, que subscreveram uma nota técnica.

O documento traz três cenários. No primeiro, os limites para usuários ficariam em 25 gramas de maconha, 6 pés florescidos da planta e 10 gramas de cocaína ou de crack.

No segundo, as quantidades seriam, respectivamente, 40 gramas, 10 pés e 12 gramas. E, no terceiro, 100 gramas de maconha, 20 pés de plantas florescidas e 15 gramas de cocaína ou crack.

De acordo com o documento, a elaboração dos cenários é baseada no "referencial teórico mais confiável nas áreas médica, jurídica e político-criminal, como a Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack", bem como em "depoimentos de profissionais da área médico-científica e de usuários de drogas ilícitas".

Esses cenários foram avaliados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em um estudo recém-lançado que investigou as quantidades de drogas apreendidas com pessoas acusadas ou condenadas por tráfico e o impacto da adoção desses critérios sobre a população carcerária brasileira -a terceira maior do planeta, atrás de EUA e China.

Foram avaliados 48.532 processos por tráfico de drogas que tiveram sentença em 2019.

O cenário 1, em que o critério objetivo para maconha é posse de 25 g, 31% dos processos nos quais foi apreendida cânabis seriam reclassificados de tráfico para uso. Para cocaína (10 g), seriam impactados 34% dos processos.

O cenário 2 teria impacto sobre 37% dos processos de maconha e 36% de cocaína ou crack. O cenário 3 resultaria na reclassificação de 51% dos processos com maconha e de 40% daqueles com cocaína ou crack.

"Estamos meio século atrasados neste debate", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, especialista em dependência química e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que assinou a nota técnica de 2015. "Na Europa dos anos 1980 já estava introjetada a ideia de que a pessoa pega consumindo drogas não deveria ser presa. Descriminalização não deveria nem ser discutível, mas obrigatória."

Para ele, os critérios objetivos mais interessantes são aqueles do terceiro cenário. "No cenário 1, corremos o risco de não sair do lugar. Já tratei de dependentes de cocaína e de crack que usavam grandes quantidades em 15 dias, e, portanto, eles ainda poderiam acabar presos por tráfico", aponta. "Acho preferível pecarmos por excesso do que por falta."
 
 
"A meu ver, essas quantidades deveriam ser revistas", afirma o médico Francisco Inácio Bastos, pesquisador da Fiocruz e coordenador da Pesquisa Nacional sobre o uso de crack, que também subscreveu à nota técnica de 2015.

"O mercado está mudando muito rápido e com substâncias sintéticas, como opióides e canabinóides sintéticos, que podem estar misturados e escapam à detecção", afirma ele, que tem pesquisado a presença de fentanyl no Brasil, droga responsável por uma epidemia de overdoses nos EUA. "Além disso, a cocaína e o crack estão muito contaminados. Tem de tudo misturado ali", diz. "Mas minha visão está muito contaminada pelo fato de eu ser médico e pensar no dano à saúde. Eu precisaria ouvir outras pessoas antes de definir uma posição novamente."

A advogada Marina Dias Werneck, diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, que também assinou a nota de 2015, avalia o cenário 1 como "extremamente perigoso porque a gente pode, inclusive, aumentar ainda mais o encarceramento em razão da quantidade pequena de droga estipulada como parâmetro".

Na América Latina, países como Colômbia, México, Argentina, Costa Rica e Uruguai descriminalizaram posse para consumo de várias drogas.

Para o médico Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp adepto de posições conservadoras sobre política de drogas e que não fez parte do grupo de especialistas da nota de 2015, "fixar uma dose de drogas [para diferenciar usuários de traficantes] é uma bobagem e vai fazer com que nenhum pequeno traficante seja preso, já que os sistemas de delivery de pequenas quantidades de drogas são comuns nas grandes cidades".

A prisão de pequenos traficantes, no entanto, não tem demonstrado exercer impacto significativo no mercado de drogas nem no crime organizado ligado ao tráfico, que substitui rapidamente esses agentes e segue seus negócios.

O procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Mario Sarrubbo, é contra a descriminalização da posse para uso pessoal porque, para ele, o uso é a etapa final de uma longa cadeia de delitos que trazem prejuízo à segurança pública. "A criminalização da posse de drogas para consumo pessoal é, no Brasil, no momento atual, um imperativo para os enfrentamentos dos graves problemas de saúde e de segurança públicas causados pelo tráfico ilícito de drogas."

"Entendo que a descriminalização não traz ganhos para a segurança pública e para a saúde, ou para a convivência social e familiar dos dependentes", opina o coronel Onivan Elias, da PM da Paraíba.

Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos sobre Segurança e Cidadania (Cesec), que também assina a nota técnica sobre cenários de critérios objetivos, de 2015, o Brasil precisa descriminalizar e definir quantidades.

"Embora a legislação atual diga que o porte de drogas, mesmo sendo crime, não leva a uma pena de prisão, isso não tem sido suficiente para que a questão seja tratada no âmbito da saúde, e não da justiça criminal, e a polícia continua a prender pessoas pobres, negras e oriundas de favelas e periferias, que hoje povoam o sistema penitenciário do país", afirma.
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