Um projeto de lei em fase final de tramitação no Congresso Nacional pode tirar poderes da Receita Federal e abrir uma brecha para que empresas privadas de tecnologia forneçam os sistemas usados por companhias brasileiras para emitir notas fiscais e prestar informações ao Fisco.
A proposta já passou pela Câmara dos Deputados e pela CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado. Nesta Casa, falta apenas a votação em plenário. Caso o texto seja aprovado sem alterações, a proposta vai à sanção presidencial.
O avanço do projeto preocupa o Ministério da Fazenda, pois pode deixar órgãos arrecadadores sem autonomia para adotar medidas que ajudem na fiscalização do pagamento de tributos.
Há também um incômodo com o fato de a proposta ter sido gestada pela iniciativa privada, em especial por empresas de TI (tecnologia da informação), que têm interesse no tema e podem ser beneficiadas financeiramente.
A origem é confirmada pelo próprio autor da iniciativa, senador Efraim Filho (União Brasil-PB), que a protocolou quando ainda era deputado, em 2021. "Não foi um projeto produzido em gabinetes. Ele saiu do setor produtivo, de quem tem expertise na área de TI. Saiu das ruas para o Congresso", disse à Folha.
A Afrac (Associação Brasileira de Tecnologia para o Comércio e Serviços) tem participado ativamente da discussão e possui uma página em seu site dedicada à proposta, chamada de "Simplificação Fiscal Digital".
No Brasil, a enorme quantidade dessas obrigações é um alvo de críticas de empresas e tributaristas, além de impulsionar o chamado custo Brasil.
Sob a justificativa de simplificar o sistema, o projeto -batizado por seus defensores de minirreforma tributária-- prevê a criação da Nota Fiscal Brasil Eletrônica, com unificação dos documentos e registros fiscais de todas as empresas no país.
O texto também cria o CNSOA (Comitê Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias), cujo objetivo é decidir quais obrigações acessórias serão exigíveis.
O órgão colegiado seria vinculado ao Ministério da Fazenda, mas teria composição mista, com representantes da União, dos Estados, dos municípios e das confederações empresariais. Cada grupo teria seis indicações, com dois anos de mandato cada e possibilidade de recondução.
O quórum para aprovação dentro do comitê seria de 3/5, ou seja, no mínimo 15 dos 24 votos.
Na avaliação da Fazenda, o desenho é equivocado ao dar aos contribuintes poder de decisão sobre quais instrumentos a Receita pode usar para fiscalizá-los -o que é visto como conflito de interesses.
Os seis assentos das confederações não seriam, sozinhos, suficientes para barrar alguma resolução do comitê, mas bastaria o apoio de outros três representantes para barrar alguma obrigação acessória. Isso significa que o colegiado pode restringir instrumentos de fiscalização.
Embora gerem custos para os contribuintes, há obrigações acessórias criadas pelos Fiscos para ajudar, por exemplo, a avaliar se os benefícios fiscais estão sendo usufruídos por quem realmente tem direito.
Há uma situação concreta que ilustra a aplicação dessa ferramenta. O Congresso renovou os benefícios do Perse, programa que desonera tributos do setor de eventos e entretenimento (afetado pela pandemia de Covid-19), a um custo anual de R$ 4 bilhões.
Segundo relatos colhidos pela Folha, empresas de outros segmentos, como de cargas, tentaram surfar no Perse e recolher menos impostos federais. O governo só conseguiu detectar a irregularidade porque criou uma obrigação acessória: a companhia precisa assinalar uma opção que indica se a empresa usou ou não o benefício do programa.
Sob o desenho proposto no projeto de lei, a Receita Federal precisaria do aval prévio do comitê para criar essa exigência, e o pedido poderia ser negado.
Membros do governo defendem que, caso o projeto avance, o comitê seja transformado em uma instância consultiva, a quem os Fiscos prestam contas, mas sem poder normativo.
Há o temor de que o colegiado se converta em um novo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que tem composição paritária entre indicados da Fazenda e dos contribuintes e virou palco de derrotas bilionárias para a União.
O senador Efraim Filho diz que a composição do comitê "redistribui as competências regulatórias". "Por isso a Receita resiste. Perde a caneta de todo dia estar baixando uma regulamentação diferente", afirma.
Em audiência pública realizada no Senado na última terça-feira (136/), o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, disse que a proliferação de obrigações acessórias deriva da própria complexidade do sistema tributário atual.
"Temos a União, os Estados e os municípios tributando. E cada um deles exigindo diversos impostos, taxas e contribuições. É difícil encontrar um sistema tão complexo [no exterior]. E a obrigação acessória acaba sendo complexa para refletir essa complexidade", afirmou.
O secretário disse também que, do jeito que o projeto está, a Receita perde autonomia. "Isso a Receita Federal não pode aceitar e vai propor, sim, alterações."
Plataforma de notas fiscais
Outro ponto criticado pelo governo é o fato de o CNSOA centralizar as informações fiscais de todos os entes e empresas e escolher a plataforma para armazenar e gerir esses dados --legalmente protegidos por sigilo fiscal.Hoje, isso é feito por meio do Sped (Sistema Público de Escrituração Digital), solução tecnológica mantida pela Receita Federal por meio de um contrato com o Serpro --empresa pública federal que fornece serviços de TI.
Pela proposta, há brechas para que o serviço seja repassado a empresas privadas.
"O comitê é quem define. Forma e modelo são matéria para regulamentação, mas entendemos que o comitê teria seu datacenter. O projeto não traz qual seria o modelo", afirma Efraim. Na avaliação dele, seria "natural" que a competência continuasse com alguma empresa pública, "até pela sensibilidade dos dados", mas a decisão final seria do colegiado.
O presidente da Afrac, Paulo Eduardo Guimarães, diz que, inicialmente, as operações seriam centralizadas no próprio Serpro, mas reconheceu que o projeto deixa em aberto a possibilidade de terceirização.
"Pode ser que um dia esse comitê decida que essa prestação de serviços de TI seja feita por uma empresa privada. Isso não está no radar hoje, mas fica a possibilidade para o futuro, se o Brasil tiver um governo que pense em terceirizar a infraestrutura", afirma.
O governo é contra essa medida por ver não só conflitos de interesse, mas também riscos de governança e ameaça ao sigilo fiscal.
O argumento da Fazenda é que hoje já há integração entre os entes federados. Todos os estados e o Distrito Federal já estão no Sped. Nos municípios, o processo tem sido paulatino, mas já houve a adesão de 500 prefeituras, responsáveis por 60% das notas fiscais.
Efraim Filho afirma que o ingresso dos municípios no Sped é voluntário, e o projeto de lei daria mais força a essa integração ao tornar a unificação obrigatória. "Ele é bom para o setor produtivo e é bom para o governo. Ao simplificar, ele combate a sonegação", diz.
Para o presidente da Afrac, o novo sistema poderia gerar uma economia de R$ 152 bilhões para as companhias que hoje arcam com os custos das obrigações.
A avaliação geral na equipe econômica é que a busca pela simplificação é válida, mas é preciso ter cautela, sobretudo diante da possibilidade de aprovação da reforma tributária.
"É importante que essa discussão seja concomitante à reforma, sob pena de um desperdício muito grande de energia e recursos públicos", alertou Barreirinhas na audiência pública.
O representante do Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários Estaduais de Fazenda) na audiência, Antônio Machado Guedes Alcoforado, disse que debater obrigações acessórias "não é oportuno neste momento".
"Esse projeto, apesar dos propósitos nobres, não é adequado neste momento que antecede a possível aprovação de uma reforma tributária", afirmou. Segundo ele, não faz sentido revisar obrigações relacionadas a tributos que deixarão de existir, caso a reforma avance.
O senador Efraim Filho diz que, após a realização da audiência, vai cobrar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a inclusão do projeto na pauta de votações do plenário.